Você está aqui
Home > Destaque > A REALIDADE DOS PROFISSIONAIS DA COSTURA

A REALIDADE DOS PROFISSIONAIS DA COSTURA

Ocupação está entre as que mais reúne mão de obra no país e tenta se renovar diante dos desafios tecnológicos e sociais

Costurar: um ofício milenar e tão presente em nosso dia a dia que, para quem não é do setor, costuma não ter a dimensão de sua importância para nossa vida e suas infinitas aplicações, que correm muito além do vestuário. Da Pré-História, emendando peles de animais, da costura à mão, criação das agulhas de metal, introdução das máquinas de costura mecânicas em 1755 e, trazendo para os dias de hoje, a relevância da costura só aumentou com o desenvolvimento da humanidade e suas necessidades. Até robôs têm sido programados para costurar, mas é o ser humano quem ainda domina as técnicas, as nuanças e as emoções que dão sentido e um valor ainda maior ao ato. Por que, então, esses profissionais da costura, na maior parte das vezes, não têm o reconhecimento merecido?

No Brasil, um dos poucos países no mundo que possuem todos os elos da cadeia têxtil, a confecção tem papel de destaque na geração de postos de trabalho, especialmente na costura: com cerca de 22 mil unidades produtivas formais em todo o país, o setor confeccionista em geral emprega, em média, 1,1 milhão de pessoas, de acordo com os dados do Relatório Setorial da Indústria Têxtil Brasileira 2021 do IEMI – Inteligência de Mercado. Na costura, especificamente, são 381.382 (RAIS – 2020). Partindo desses números, tente fazer um cálculo por cima de quantas famílias, a maioria sustentada por mulheres, dependem da costura aqui no país para ter o seu sustento. Reforçando, só na área formal de postos de trabalho.

CENÁRIOS DIVERSOS

Como vivemos em um país de proporção continental, é de se esperar que não haja homogeneidade, ou seja, uma situação única de trabalho entre os profissionais, incluindo o de costura. Demandas regionais, segmentadas, custo de vida, situação econômica, oferta e concorrência de vagas, especialização e capacitação são alguns dos fatores que devem ser levados em conta na hora de analisar a situação. Claro que é possível fazer uma média, mas não generalizar.

“A produção de vestuário está presente em todo o território nacional, e não é segredo para ninguém que nos grandes centros urbanos, onde há uma oferta maior de trabalho em outros segmentos da economia, tem havido uma disputa mais intensa pela mão de obra, e uma discussão se as pessoas preferirão trabalhar em fábricas, no comércio, em prestação de serviços ou outras diversas atividades, e isso impacta na dificuldade – ou não – de absorver profissionais experientes ou como primeiro emprego na área da costura, dependendo da região e da área de atuação da confecção”, diz Fernando Pimentel, presidente da Abit.

Entre os estados com a maior concentração de empresas do setor têxtil e principalmente de confecção, estão: São Paulo (26,1%); Santa Catarina (18,6%); Minas Gerais (13%); Paraná (8%); Rio de Janeiro (6%); Ceará e Rio Grande do Sul (4,9%); Goiás (4,8%) e Pernambuco (4,1%).

Além da empregabilidade, os salários também variam conforme as regiões, de acordo com os pisos, aplicados em 80% dos casos, e grau de escolaridade. Enquanto a média nacional é de R$ 1.473,20, o piso salarial atual para funções qualificadas na área de costura nas cidades de São Paulo e Osasco, ambas no estado de São Paulo, é de R$ 1.705,31. Para funções diferenciadas, como pilotagem, modelagem, corte e coordenação de setor, por exemplo, é de R$ 1.857,59. Segundo a presidente do Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco, Eunice Cabral, é o maior piso da categoria no país, fruto de muitas conversas e negociações com as empresas, mas ainda assim, considerado insuficiente para o custo de vida básico na maior cidade do país. Para Eunice, depois das mudanças na Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) e na questão previdenciária, houve uma precarização muito grande no segmento, com grande parte das confecções “pejotizando” suas costureiras, jogando a elas encargos e custos que antes eram da empresa, como impostos, energia elétrica, transporte, entre outros.

De qualquer forma, os estados que melhor remuneram os profissionais da costura são: São Paulo, Santa Catarina, Rio de Janeiro e Minas Gerais. “Eu diria que a remuneração ao profissional de costura é compatível com o nível de produtividade que temos hoje no país. É a maior remuneração? Não, mas o setor – em termos de pagamentos da massa salarial – está entre os cinco primeiros do país em pessoas que trabalham nesta atividade econômica”, comenta Pimentel.

FALTA MÃO DE OBRA

Qualificada, sim, e a tendência é aumentar a escassez. Eunice Cabral conta que, na cidade de São Paulo, havia em torno de 90 mil profissionais da costura antes da pandemia de Covid-19; atualmente, 60 mil. “Agora, as confecções estão loucas atrás de profissionais, mas falta qualificação, e as empresas não investem em capacitação interna”, afirma. Este é um assunto que falaremos a seguir.

A falta de profissionais da costura aqui no país não é uma questão atual: há pelo menos 20 anos o setor vive às voltas com ela. Houve um lampejo de que as novas tecnologias e a digitalização seriam chamarizes aos mais jovens para a costura, mas isso ainda não aconteceu. Um ofício que antes era passado de geração em geração deixou de ser atrativo a eles, e este é um problema grave, pois, para costurar, precisa haver quem costure.

Eunice Cabral, presidente do Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco. / Acervo Pessoal

“Na minha opinião, costura é uma profissão milenar e que não vai acabar, pois ninguém deixará de vestir roupa. Mas espero que as coisas mudem para melhor, tanto para os trabalhadores quanto para as empresas, pois um depende do outro. Além de não termos tantos profissionais de costura, os jovens não querem saber do setor, e muitas empresas estão com dificuldades de encontrar trabalhadores para a área de costura. Falta investimento”, afirma Eunice Cabral.

O salário, segundo Eunice, também é um dos aspectos de não atrair os mais jovens para a profissão. “O setor precisa entender que os profissionais precisam de um salário melhor e alguns benefícios para poder ajudá-los, como uma creche, para costureiras que são mães e não têm onde ou com quem deixar seus filhos pequenos. Outro ponto é dar oportunidade desse profissional crescer dentro da empresa, evoluir para outras áreas”, completa.

Quem sabe como ninguém do peso dessas situações é Luiz Cláudio Leão, consultor industrial há mais de 30 anos e também consultor do Senai Cetiqt. Atuando no chão de fábrica em confecções de todo o país, ele concorda com a questão salarial não ser um bom atrativo e ainda levanta outro ponto: o de, cada vez mais, este fator atingir o interesse somente de pessoas com grau de instrução baixo, analfabetas, inclusive, sem preparo e sem treinamento.

“Se essas pessoas forem capacitadas, darão resultados, serão potencializadas, mas isso não ocorre, e, diariamente, as empresas ficam no looping de apagar incêndios. Então, o problema só se agrava. Hoje não existem estímulos e, onde não há estímulo, o interesse atrofia. Conclusão: é uma atividade laboral que está a cada dia mais difícil encontrar pessoas que queiram aprender e exercer a profissão.”

Há aí uma conjunção de fatores: técnicos, econômicos e pessoais. Idealizador da metodologia PUPI (Pequenas Unidades de Produção Inteligente), Luiz Cláudio endereça, há anos, mais um ponto crítico e, ao mesmo tempo, fundamental: as pessoas e suas relações, e dá exemplos contundentes de seu conhecimento empírico no assunto.

“A situação que enxergo não é das melhores: líderes que não lideram, que não saem do topo da pirâmide e somente analisam relatórios, não descem para ver o que de fato está acontecendo na base, para escutar as dores e fazer melhorias, se inteirar com as pessoas que movem todas as engrenagens do sistema produtivo. Costureiras que não sabem o norte, desmotivadas, empresas preocupadas com o tempo padrão, mas que não atuam em métodos; postos de trabalhos não estudados (métodos e ergonomia) para executar a operação e a costureira que se vire! Não há treinamento, sendo que um time de futebol treina de 2ª a 6ª e, no domingo, quando joga, pode ganhar, empatar ou perder, e nós, que não capacitamos as costureiras, queremos sempre que ganhem. Todo mundo falando de confecção 4.0 e vejo costureira tendo que lavar o tecido cortado porque o gato e/ou rato urinou na peça durante a madrugada na empresa, iluminação precária, abaixo do mínimo de 750 luxes, ficando péssima para enxergar o ponto da agulha no tecido, e máquinas com grandes recursos tecnológicos, mas que elas não sabem usar nenhum deles, chegando ao ponto de desativarem por falta de treinamento e, até mesmo, por causa do medo. De outro lado, há profissionais da costura precisando mudar sua postura comportamental de que nada está bom, não querem se aperfeiçoar, ser polivalentes e aprender mais como profissionais, fatores que levam a se distanciar do ofício.”

CAPACITAÇÃO: EMPRESA OU FUNCIONÁRIO?

Este é um ponto conflitante na relação confecção × costureira, pois precisa partir de ambos os lados. Há situações e situações: desde empresas que se preocupam em ter uma mão de obra qualificada e investem nesta qualificação, interna ou externa; as que querem, mas não têm condições físicas ou financeiras; e as que não têm interesse em fazê-lo. Da mesma forma é com o profissional da costura: os que têm condições de fazer cursos e especializações por conta e vão atrás; os que não se interessam; e os que querem, mas não têm condições financeiras e tempo. Uma equação difícil, mas não impossível de ser resolvida de alguma forma que se encaixe nessas diferentes realidades.

“Este setor tem uma característica muito interessante: é composto em 87% por mão de obra feminina e 40% das mulheres que trabalham nele são chefes de família, sustentam a casa. Então, elas não têm como tirar o dinheiro do alimento para os filhos e colocar num curso, mesmo que ela queira e tenha vontade, pois 80% das confecções pagam o piso salarial; nos cursos gratuitos, as vagas se esgotam rapidamente. Essas costureiras saem cansadas da jornada de trabalho e ainda têm que enfrentar transporte público cheio, demorado, chegar em casa para cozinhar, cuidar dos filhos, não sobra tempo nem disposição. Então, mesmo que a costureira queira, é muito difícil fazer uma capacitação por conta própria, bem como também é difícil, hoje, de as empresas terem alguma pessoa dentro da fábrica para ensinar no dia a dia. Eu digo que sempre que a empresa faz esse tipo de trabalho ela qualifica o trabalhador de acordo com o ritmo de produção, com aquilo que a empresa deseja para seu produto e sua marca. É um investimento, mas muitas empresas acham que é perda de tempo. Acho que é nesse ponto em que estamos pecando, pois nosso setor é muito importante para a economia, grande gerador de mão de obra, só perdendo para o de alimentação como primeiro emprego”, avalia a presidente do Sindicato das Costureiras de São Paulo e Osasco.

O consultor industrial do Senai Cetiqt endossa, alertando sobre a importância e a carência de centros de treinamentos internos nas confecções. Para Luiz Cláudio Leão, como não há treinamento e os profissionais de costura mais novos são pressionados por resultados iguais aos dos mais experientes, e não alcançam, acabam perdendo o interesse por essa importante profissão e partem em busca de outras atividades.

“Ainda há muito o que fazer: precisa investir em educação, não só no setor, mas de modo geral, no país”, aponta Eunice. “Acho que há condições de fazer esse investimento, de nossos profissionais serem valorizados. E há muitas pessoas no nosso setor que não sabem ler e escrever. Em nosso país, infelizmente, há esse problema: não mesclam a experiência com o novo, não valorizam o profissional qualificado, experiente, que sabe fazer, para equilibrar com quem está começando a aprender agora no mercado de trabalho, isso em vários setores.”

Somado a esses fatores, há o avanço tecnológico que empurra as confecções a um nível de qualidade e agilidade impressionantes. E adivinhem: é necessário ter cada vez mais atualizações não só nos maquinários, mas também – e em especial – nos operadores.

O presidente da Abit reforça que essa evolução de treinamentos demanda, também, profissionais com maior capacidade de leitura e interpretação de dados, bem como de correção de problemas que, porventura, venham a ocorrer na linha de produção.

“Cada vez mais recorrente, o treinamento de um operador de maquinário de costura se dará com a evolução da tecnologia e da capacidade de entender aquilo que está ocorrendo para poder tomar decisões autônomas mais assertivas, que permitam a evolução do processo produtivo”, pontua.

BONS EXEMPLOS

Nem só de situações lastimantes vive a confecção, há muitos exemplos inspiradores também, como o caso das associadas ao Programa da Associação Brasileira do Varejo Têxtil (ABVTEX), entidade que representa as principais redes de varejo de moda do país.

O Programa ABVTEX, ativo desde 2010, é considerado o maior esforço setorial da cadeia de valor da moda no Brasil em prol da responsabilidade social, do compliance e na promoção do trabalho digno, combatendo o uso de trabalho análogo ao de escravidão, infantil e estrangeiro irregular por fabricantes e seus subcontratados, que são cerca de 400 mil trabalhadores diretos da produção de vestuário, calçados e acessórios, impactados positivamente com seus direitos garantidos e condições dignas de trabalho. De acordo com a entidade, esses milhares de trabalhadores são oriundos das 3.715 empresas fornecedoras aprovadas, distribuídas em 635 municípios e 17 estados brasileiros. Esse número bateu recentemente o recorde de trabalhadores beneficiados pelo Programa.

“São costureiras que estão vinculadas ao Sistema CLT, com todas as garantias da legislação trabalhista, como o recolhimento de Fundo de Garantia e de INSS, tendo toda a sua dignidade preservada. São costureiras que também estão submetidas a uma remuneração em conformidade com as negociações por categoria nas diversas regiões do país”, comenta Edmundo Lima, diretor-executivo da ABVTEX.

Ele ressalta que, em relação ao restante do mercado, há uma preocupação relativa às condições de trabalho daqueles que não estão sujeitos ao monitoramento do Programa ABVTEX. “É provável que haja problema de irregularidades e condições de trabalho. Daí a importância de ampliar a adesão de empresas que ainda não fazem parte deste grande movimento da sustentabilidade na moda para se beneficiarem das oportunidades de crescimento que o Programa proporciona, além de promover a concorrência leal no setor.”

Edmundo Lima, diretor-executivo da ABVTEX. / Divulgação

Em abril, a ABVTEX, em conjunto com a Abit e a Organização Internacional do Trabalho (OIT), anunciou a introdução no Brasil, com o apoio do Ministério Público do Trabalho (MPT), da Metodologia Score (Sustentando Empresas Competitivas e Responsáveis, traduzido do inglês), um programa que visa melhorar a produtividade e as condições de trabalho de pequenas e médias confecções da região Metropolitana de São Paulo. Segundo os atores desse projeto, a definição do setor e da região de início do projeto se deveu à origem dos recursos, ao potencial do cluster têxtil e de confecções de São Paulo e a infraestrutura de treinamento local para uma primeira utilização da metodologia Score, iniciativa global da OIT que reúne experiências de sucesso em mais de 20 países na África, na Ásia e na América Latina, e tem como objetivo aumentar a produtividade e melhorar as condições de trabalho de PMEs, contribuindo para atingir os seguintes Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da Agenda 2030 no Brasil: ODS 5 (Igualdade de gênero), ODS 8 (Trabalho decente e crescimento econômico), ODS 9 (Indústria, Inovação e Infraestrutura), e ODS 12 (Consumo e produção responsáveis).

Organizada em módulos e explorando temas como gestão da força de trabalho, produção limpa, controle de qualidade, saúde e segurança no trabalho e promoção da igualdade de gênero, a metodologia tem como foco o papel da cooperação entre trabalhadores e empregadores para a obtenção de ganhos compartilhados de produtividade e competitividade. Por meio de treinamentos práticos e consultorias in-factory, a metodologia estimula a adoção de ferramentas de cooperação no local de trabalho e o trabalho decente.

As atividades serão desenvolvidas até, pelo menos, novembro de 2024 e poderão ser ampliadas para outros setores e regiões do país, dependendo da disponibilidade de recursos. A longo prazo, o projeto tem como objetivo a incorporação sustentável da metodologia Score por parceiros nacionais. Nesse caso, a participação da Abit e da ABVTEX como membros do Comitê Executivo do Projeto Score, contribui para aproximar a metodologia dos desafios específicos dos setores têxtil e de confecção no Brasil e para mobilizar atores estratégicos para o sucesso da iniciativa.

Deixe um comentário

Top